Do Cogito ao Genoma: a Inteligência Artificial como Condicionadora Biológica do Homo sapiens

Resumo

Historicamente, certas tecnologias transcenderam sua função instrumental e se tornaram fatores condicionantes do próprio ser humano. O fogo, ao alterar a dieta e a organização social, provocou transformações morfológicas e cognitivas duradouras. Neste artigo, argumenta-se que a inteligência artificial (IA), embora não biológica em sua natureza, pode atuar como tecnologia condicionadora do organismo humano, produzindo efeitos neurocognitivos, fisiológicos e epigenéticos, seja por uso contínuo, por mediação comportamental ou por integração com biotecnologias emergentes. Propõe-se que a IA seja compreendida como catalisadora de uma nova fase evolutiva assistida e culturalmente dirigida, em que cognição e biologia passam a se moldar reciprocamente.


1. Introdução

A distinção entre tecnologia e biologia tem sido, tradicionalmente, rígida. No entanto, ao longo da história do Homo sapiens, certas tecnologias transcenderam sua funcionalidade utilitária e passaram a exercer influência direta na formação do corpo, do cérebro e dos comportamentos. Com a emergência da inteligência artificial — especialmente em sua vertente generativa, interativa e integrada —, abre-se a possibilidade de um novo tipo de condicionamento: não apenas cultural ou cognitivo, mas biológico, mediado por uso contínuo e retroalimentação comportamental.


2. O paradigma do fogo: tecnologia como fator evolutivo

A domesticação do fogo representa um marco indiscutível na história da espécie humana. Estudos como os de Wrangham (2009) sustentam que o ato de cozinhar alimentos reduziu o custo energético da digestão, permitiu maior ingestão calórica e liberou tempo para atividades culturais. Isso gerou impactos físicos mensuráveis: redução da mandíbula, modificação da arcada dentária, alteração da microbiota intestinal e expansão do cérebro.

Assim, o fogo é exemplo de uma tecnologia que, ao ser incorporada culturalmente, passou a atuar como vetor de transformação biológica. A IA, embora de natureza não física, pode seguir caminho análogo.


3. IA como agente de condicionamento cognitivo e comportamental

A inteligência artificial já vem alterando, em populações conectadas, o modo como pensamos, aprendemos e tomamos decisões. As mudanças mais visíveis ocorrem em três áreas principais:

a) Atenção e memória

O uso constante de assistentes inteligentes e ferramentas de busca desloca a função de memória do indivíduo para sistemas externos (Clark & Chalmers, 1998). Isso pode reduzir a dependência da memória operacional e afetar a capacidade de retenção a longo prazo.

b) Recompensa e dopamina

A interação com IAs que respondem imediatamente e com alta precisão estimula mecanismos de recompensa cerebral, potencialmente reconfigurando o sistema dopaminérgico — algo já observado com redes sociais e mecanismos de gamificação (Alter, 2017).

c) Neuroplasticidade e aprendizado

Ambientes mediaticamente saturados e personalizados por IA moldam o desenvolvimento do córtex pré-frontal, principalmente em crianças. Estudos indicam que a exposição precoce a tecnologias digitais altera o desenvolvimento da linguagem, do foco e do julgamento crítico.


4. IA e o corpo: impactos fisiológicos e genéticos indiretos

Embora a IA atue primordialmente no plano da cognição, ela pode indiretamente condicionar o corpo humano por:

  • Alteração do sono: Assistentes noturnos, telas inteligentes e estimulação mental prolongada podem afetar a produção de melatonina e os ciclos circadianos.
  • Sedentarismo mediado por IA: Ferramentas que automatizam decisões e deslocamentos podem favorecer estilos de vida passivos, com impactos metabólicos.
  • Epigenética comportamental: Padrões de uso e estresse digital contínuo podem ativar ou suprimir genes via mecanismos epigenéticos, conforme estudos em neuropsiquiatria e saúde ambiental vêm sugerindo (Meaney & Szyf, 2005).

5. Integração com biotecnologias: IA como agente evolutivo direto

O potencial transformador da IA se amplifica quando combinada com outras tecnologias:

  • Interface cérebro-máquina (como o Neuralink): propicia a fusão literal entre neurônios e algoritmos, abrindo espaço para uma cognição híbrida.
  • Edição genética orientada por IA: algoritmos podem otimizar decisões sobre CRISPR e seleção de embriões, influenciando diretamente a herança biológica.
  • Próteses inteligentes e exoesqueletos: prolongam e redefinem o corpo humano, podendo alterar padrões motores, posturais e sensoriais.

Nesse sentido, a IA passa a atuar como vetor de evolução dirigida — uma forma inédita de seleção, não mais natural, mas inteligentemente assistida.


6. Considerações finais: de condicionados a co-evolutivos

Ao considerar os impactos da inteligência artificial no corpo, na mente e no comportamento, evidencia-se que estamos diante de uma tecnologia não apenas funcional, mas ontogenética. Ela altera o modo de ser, o modo de agir e, potencialmente, o modo de existir biologicamente.

Se o fogo moldou o Homo sapiens do passado, é plausível que a IA esteja moldando o Homo do futuro — talvez Homo intellectus, Homo informaticus, ou outra denominação ainda por surgir.

Trata-se, portanto, de uma virada antropológica silenciosa, mas profunda, que requer vigilância ética, reflexão filosófica e consciência social.


Referências

  • Alter, A. (2017). Irresistible: The Rise of Addictive Technology and the Business of Keeping Us Hooked. Penguin Press.
  • Clark, A., & Chalmers, D. (1998). The extended mind. Analysis, 58(1), 7–19.
  • Harari, Y. N. (2015). Homo Deus: Uma breve história do amanhã. Companhia das Letras.
  • Meaney, M. J., & Szyf, M. (2005). Environmental programming of stress responses through DNA methylation: life at the interface between a dynamic environment and a fixed genome. Dialogues in Clinical Neuroscience, 7(2), 103–123.
  • Wrangham, R. (2009). Catching Fire: How Cooking Made Us Human. Basic Books.

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