A Inteligência Artificial como Elemento Condicionador do Ser: uma analogia com o fogo na trajetória evolutiva do Homo sapiens

Resumo

A introdução da inteligência artificial (IA) na vida cotidiana dos seres humanos representa um marco potencialmente comparável, em termos civilizacionais, à domesticação do fogo. Assim como o fogo reconfigurou as condições biológicas, sociais e cognitivas do Homo sapiens, a IA emerge como uma tecnologia que transcende a função instrumental e passa a condicionar ontologicamente o ser humano. Este ensaio propõe que a IA possa ser compreendida como um novo “fogo”, alterando a natureza da cognição, da linguagem, da cultura e das relações humanas, inclusive sugerindo uma possível bifurcação antropológica entre populações que a adotam e aquelas que dela permanecem alheias.


1. Introdução

Ao longo da história da humanidade, determinados artefatos tecnológicos transcenderam sua utilidade prática e passaram a exercer função constitutiva da subjetividade humana. O fogo, a escrita, a imprensa e, mais recentemente, a internet, são exemplos paradigmáticos. Com o advento da inteligência artificial, especialmente em sua forma generativa e interativa, coloca-se a hipótese de que a IA deixe de ser apenas uma ferramenta de apoio e passe a atuar como estrutura condicionadora do ser.


2. O fogo e a mutação do humano

A domesticação do fogo, datada de centenas de milhares de anos, é frequentemente apontada como um divisor de águas na história evolutiva do Homo sapiens. Como destaca Richard Wrangham (2009), o fogo permitiu a cocção dos alimentos, a reorganização dos ciclos de sono, a socialização noturna e, sobretudo, a liberação de tempo e energia para o desenvolvimento de capacidades simbólicas, narrativas e técnicas.

Portanto, o fogo não apenas facilitou a sobrevivência: ele transformou o próprio ser humano, operando uma mutação nas formas de habitar o mundo e de se constituir enquanto sujeito coletivo e individual.


3. IA: um novo elemento transformador

A inteligência artificial, especialmente em sua vertente interativa (como os sistemas de linguagem e decisão autônoma), representa mais que um avanço técnico. Ela atua como extensão cognitiva (Clark & Chalmers, 1998), externalizando funções antes exclusivamente humanas, como a memória, o raciocínio, a criatividade e até a linguagem.

Essa externalização não é neutra. Ela reconfigura:

  • A forma como pensamos (decisões delegadas a algoritmos),
  • A forma como aprendemos (personalização da educação mediada por IA),
  • A forma como nos comunicamos (uso de IA em interações sociais),
  • A forma como produzimos cultura (arte generativa, textos, música, imagem).

4. Bifurcação civilizacional: IA como diferencial ontológico

Supondo a permanência de comunidades humanas (indígenas, tribais ou tradicionalistas) que não venham a adotar a IA, teremos uma possível bifurcação no próprio modo de ser humano.

Tal como a revolução agrícola separou os caçadores-coletores dos primeiros estados, e a revolução industrial criou uma cisão entre modos de vida urbanos e pré-industriais, a IA pode criar linhagens culturais distintas:

  • Uma, caracterizada pela fusão simbiótica com sistemas de inteligência artificial, ampliando capacidades cognitivas e alterando profundamente a noção de autonomia.
  • Outra, preservando o modelo cognitivo ancestral, baseado na oralidade, na observação direta, na memória biológica e na convivência comunitária sem mediação algorítmica.

Essa cisão não é apenas tecnológica. É ontológica: diz respeito à maneira como o sujeito se constitui em relação ao mundo, ao tempo, à linguagem e à própria consciência.


5. Homo sapiens, Homo technologicus ou Homo intellectus?

É legítimo questionar se, diante da incorporação da IA em múltiplas esferas da vida, o Homo sapiens sapiens ainda se mantém como categoria adequada. Autores como Harari (2015) propuseram o termo Homo deus para designar a capacidade humana de assumir funções divinas — criar vida, prever eventos, alterar a natureza.

Aqui, propõe-se uma alternativa: Homo intellectus — o ser que compartilha sua cognição com inteligências artificiais, que habita o mundo não apenas através de sentidos biológicos, mas por meio de assistentes, algoritmos e modelos preditivos. Um ser cuja sabedoria já não é apenas orgânica, mas sintética e expandida.


6. Considerações finais

A inteligência artificial, como o fogo, não é uma simples ferramenta. É um marco antropológico. Ela altera profundamente a forma como o ser humano aprende, decide, se expressa e se relaciona. Ao condicionar o ser, ela reconfigura o próprio projeto humano, abrindo a possibilidade para uma nova etapa da evolução — não mais biológica, mas tecno-ontológica.

Estamos, talvez, diante do nascimento de um novo humano. Não por mutação genética, mas por simbiose informacional.


Referências

  • Clark, A., & Chalmers, D. (1998). The extended mind. Analysis, 58(1), 7–19.
  • Harari, Y. N. (2015). Homo Deus: Uma breve história do amanhã. Companhia das Letras.
  • Wrangham, R. (2009). Catching Fire: How Cooking Made Us Human. Basic Books.

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